Especialista com mais de 40 anos no setor, Marcos Gouvêa de Souza, fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem, aponta a ‘combinação virtuosa’ de fatores que devem beneficiar o consumo e as vendas do comércio após um período difícil
“Back to the future”. Ou, parafraseando o famoso clássico da Sessão da Tarde dirigido por Robert Zemeckis, “De volta para o futuro”. Esse, que será o mote da edição 2023 do Latam Retail Show, considerado um dos maiores eventos sobre varejo da América Latina, realizado nos próximos dias 19 e 21 de setembro, sinaliza como o setor pode voltar à trilha de retomada do pré-pandemia.
Pelo menos na avaliação de Marcos Gouvêa de Souza, especialista com mais de 40 anos em varejo e consumo, fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e um dos idealizadores do congresso, que acontece desde 2015 no Expo Center Norte, na capital paulista.
O ano iniciou tumultuado para o varejo, com notícias negativas em série sobre problemas operacionais e financeiros de varejistas do porte de Americanas, Marisa e Tok & Stock e outras. Fora os resquícios da pandemia, que ainda produziam efeitos complicados na vida – e no bolso – do consumidor.
Mas, ainda que existam discussões pendentes, como a reforma tributária, o cenário começou a mudar, segundo o especialista, com a melhora do cenário econômico, o início da queda nas taxas de juros e da inflação, e o avanço no emprego e renda e, em consequência, a alta na confiança do consumidor. E mais: a subida de nivel do rating do Brasil, que volta a ser atraente para investidores estrangeiros.
Ao olhar para o histórico recente da confiança, o especialista da Gouvêa Ecosystem afirma que, no momento, o indicador está em um de seus maiores patamares nos últimos anos, apontando fatores que são quase uma “combinação virtuosa”, conforme disse, que gera perspectivas de melhoria do consumo e, consequentemente, das vendas do varejo.
“Aproximadamente 26% do emprego formal do Brasil está no varejo e no comércio, então a proposta é discutir como um setor com essa relevância econômica pode repensar o momento, a realidade back to the future, para precipitar essa reflexão do que é bom para o país e do que é bom para ele.”
Publisher da plataforma Mercado & Consumo, Marcos Gouvêa de Souza também é membro do Conselho do Instituto para o Desenvolvimento do Varejo (IDV), do Instituto Food Service Brasil (IFB) e do Ebeltoft Group, aliança global de consultorias especializadas em varejo presente em 25 países. É também Presidente do LIDE Comércio e membro do Conselho dos grupos Portobello e BFFC/Bob’s.
A seguir, em sua conversa com o Diário do Comércio o especialista traz um panorama do setor e do e-commerce, inclusive para pequenos negócios. Mas também alerta para alguns pontos controversos da reforma tributária em discussão, as armadilhas do crossborder, e a urgência de criar isonomia tributária para que o varejo brasileiro concorra de igual para igual com as gigantes do mercado asiático.
O que esperar da edição 2023 do Latam Retail Show com esse mote de “voltar para o futuro”?
Essa edição tem uma característica importantíssima, que vem da própria proposta do titulo do evento, que é hora de voltar à trilha do futuro que tinhamos no pré-pandemia. Ninguém pode ignorar que tudo está muito reconfigurado no varejo e no consumo porque, não só algumas coisas se aceleraram, como outras tomaram um rumo diverso do que tínhamos anteriormente.
E, adicionalmente ao momento do Brasil, há características muito diferentes da sequência em que estávamos vindo, com a perspectiva da reforma tributária, a discussão intensa sobre a reforma administrativa, e até com a tentativa de voltar à discussão de temas da reforma trabalhista.
Mas o que há em comum é que estamos ainda carentes de um projeto para a nação. Se olharmos nosso cenário do geral para o particular, só estamos tocando as coisas, projetando o passado recente e um futuro próximo, mas não olhando o que construir em termos mais estratégicos, mais estruturais.
E aí o setor de varejo e consumo acabaram, de alguma maneira, tendo de se adaptar a essa realidade, que começa na realidade internacional global, e que de alguma maneira privilegia esse momento do Brasil e o futuro do Brasil, mas também muito ligado ao que nós temos no momento do país.
Tivemos nesse começo de ano uma ‘tempestade quase perfeita’ atingindo o varejo, pela conjunção de problemas de algumas empresas ligados ao que foi o esforço para um equilibrio possível durante a pandemia. E o custo que isso trouxe, por exemplo, na inadimplência para os consumidores, na inflação e na taxa de juros que foi mantida muito alta para fazer frente aos desafios da inflação. Então, numa visão de curto prazo, tudo isso afetou muito o setor de varejo porque afetou muito o consumidor.
Mas agora, qual é o cenário que se configura para o varejo?
As perspectivas a partir de agora são bem diversas porque nós temos a melhoria da renda real. Se compararmos olhando 10 anos atrás, está nos maiores patamares, assim como a redução do desemprego. Sem esquecer que, os números que temos visto hoje em dia, poderiam ser ainda melhores, se tivéssemos contemplando tudo aquilo que vemos de alteração estrutural nas relações de emprego, com o crescimento dos MEIs, do autoemprego, do crescimento das franquias.
Temos o início da redução da taxa de juros, que é uma sinalização importante, um quadro onde a inflação caiu significativamente – em especial a de alimentos, que é a que mais sensibiliza o consumidor, especialmente de média e baixa renda. E a conjugação desses elementos faz com que a confiança do consumidor esteja nos maiores patamares dos últimos anos.
E se olharmos a história recente da confiança do consumidor, um indicador que mostra que estamos num dos maiores patamares desse índice nos últimos anos, sinaliza uma perspectiva de melhoria do consumo e, consequentemente, das vendas do varejo. Mas há uma série de questões ainda pendentes, especialmente as que podem mudar muito o cenário futuro, como a reforma tributária.
Porque algumas coisas que estão se desenhando, na proposta em discussão no Senado, podem gerar aumento de preço para consumidores, com impacto no consumo. E lembrando que não são as empresas que pagam o imposto: quem paga é o consumidor, as empresas só recolhem em nome dele.
No Latam, o que queremos trazer é examente isso: partir dessa visão de mundo com 225 palestrantes nacionais e internacionais, mais de 10 pesquisas e estudos inéditos que serão apresentados, trazer uma oportunidade de reflexão coletiva que considere essa visão do mercado internacional e do mercado local, dos movimentos que acontecem no varejo e consumo na economia e na sociedade, para precipitar essa reflexão do que é bom para o país e do que é bom para o setor.
O varejo é o maior empregador privado do país. Aproximadamente 26% do emprego formal do Brasil está no varejo e no comércio, então é discutir como um setor com essa relevância econômica pode repensar o momento, a realidade back to the future, e contribuir para esse projeto de nação.
Em conversa recente com o Diário do Comércio, a rede americana Ihop adiantou que está prospectando o mercado brasileiro. Com a melhora gradual do ambiente econômico, e o rating do país subir um pouco, o senhor visualiza a tendência da vinda de redes internacionais para cá?
Existe uma visão internacional mais positiva sobre o Brasil como destino de investimento de risco. E não podemos ignorar também que nosso mercado tem 203 milhões de jovens. A idade média aqui está em 33, 34 anos, e comparativamente a outros países do mundo, é uma população muito jovem.
Começamos a envelhecer mais rapidamente, e dados recentes do Censo mostram isso. Mas ainda somos o país mais jovem do mundo, e isso cria uma propensão, uma abertura grande para o novo, para o que está envolvido com o digital – facilitando a entrada de novas marcas em relação a economias mais maduras, mais fechadas, com idade média maior e predisposição ao novo menor do que aqui.
Então, sim: o Brasil cresceu em importância e atratividade para o mercado internacional. Somos um dos maiores mercados a receber investimento de risco globais, estamos sempre lá entre os 3, 4 principais. Isso quando não somos o primeiro em investimento direto externo de risco.
Mas não podemos esquecer que a economia se tornou globalmente mais digital. Se você tem a virtude do crescimento do e-commerce, de outras alternativas de canal, também há um risco grande, que é o mercado assediado e abastecido por players globais, sem estrutura local – o chamado crossborder, que são aquelas marcas de fornecedores globais que operam no mundo inteiro com pouca ou nenhuma contribuição com a economia local, mas se beneficiam do tamanho daquele mercado.
Essa discussão sobre a concorrência desleal com gigantes do e-commerce asiático, como Shein, Alibaba e Shoppe, ‘pegou’ bastante no início desse ano. Qual sua avaliação sobre o assunto?
Vocês da imprensa têm acompanhado toda a história dos tais US$ 50 dólares, que originalmente era uma concepção de algo que um amigo mandasse para outro, seja um presente, uma lembrança (por isso tinha isenção de imposto de importação), mas foi desvirtuado e se transformou em um instrumento de venda de produtos por empresas para o mercado interno com isenção tributária.
E que agora, momentaneamente, piorou – porque criou-se a história do ICMS de 17% e a isenção do imposto de importação com aceleração do processo de liberação. Então, esse é pior dos mundos.
É verdade que o Brasil se tornou mais atraente, uma atração que do lado positivo pode trazer investimento, pode gerar emprego e renda localmente. Mas do lado negativo, traz players globais usando artifícios existentes, que disputam mercado com empresas brasileiras, que atuam como varejo ou fabricantes de produtos, gozando de isenção que empresas aqui localizadas não conseguem.
E isso é parte da configuração: ninguém vai bloquear o crossborder porque o consumidor quer, e isso significa ter de manter. Por outro lado, tem de assegurar isonomia competitiva, pois não se pode beneficiar empresas de fora em detrimento das locais.
Falando nisso, a Shein, que deve começar a produzir por aqui, será um divisor de águas no varejo brasileiro mais para o positivo ou para o negativo?
Produzir localmente é positivo, trazer novos modelos de negócio é positivo, ter uma marca global operando no mercado brasileiro é positivo. O que não é positivo é ter uma isenção tributária e um benefício fiscal para fazer isso acontecer. Esses benefícios distorcem toda nossa estrutura tributária e criam uma desigualdade competitiva totalmente questionável. Questionável não, indesejável.
Em igualdade de condições competitivas, todos são muito bem-vindos para operar legalmente no varejo brasileiro, nós somos um dos mercados mais abertos do mundo: para receber empresas, para abrir loja e operar em igualdade de condições. Tudo isso é muito saudável, como já aconteceu com muitas que vieram para cá. Mas o que é inaceitável é ter uma isenção, ter um benefício que permite atuar no mercado brasileiro, mas que as empresas locais não possam ter.
Voltando um pouco à questão de marcas internacionais, o senhor pode citar quais redes já têm o Brasil no radar?
Algumas empresas, principalmente europeias, para não falar da Ásia também, estão olhando o mercado brasileiro. Se a gente olhar o que China está atenta ao mercado brasileiro, seja nessa questão do consumo, seja em outras áreas, é algo muito forte. O varejo internacional mira a expansão de negócios no Brasil sim, principamente o de origem europeia. Mas não posso ir mais além disso.
O varejo brasileiro começou o ano com o rombo das Americanas, depois problemas na Marisa, Tok & Stok, Amaro, Centauro, entre outras, e agora entra no 2° semestre com a Casas Bahia avisando que vai fechar 100 lojas e demitir. A que o senhor credita essa reviravolta em tantas varejistas quase ao mesmo tempo: a todos esses fatores ou problemas de gestão, mesmo?
É aquilo que eu falei da tempestade quase perfeita: tudo o que diz respeito ao varejo, ao comércio, começa e termina com o consumidor. E sob o ponto de vista do consumidor, o período foi muito difícil, ele tinha se endividado muito na pandemia para sobreviver. E tinham taxas de juros altíssimas, mantidas em patamar alto para neutralizar a inflação, penalizando o consumidor de baixa renda.
Havia um cenário onde a renda real estava deprimida por conta da própria inflação. A confiança do consumidor foi contraída pela composição daquele cenário, além do princípio de um novo governo, que cria um nivel de insegurança para todos. Com a conjugação desses fatores, criou-se um cenário onde predominou a cautela, o cuidado, e retraiu o consumo.
O crédito foi afetado pela questão das taxas de juros, pela cautela de algumas empresas – e não foram tantas assim. Primeiro pelo que entrava de mercadoria externa sem pagar imposto no Brasil. Segundo, porque estavam saindo da pandemia abalados. Mas também houve casos que envolveram gestão.
Tudo isso conspirou para criar um cenário realmente dificil. Mas se olharmos no começo desse 2° semestre, há perspectivas significativamente diferentes sobre taxa de juros, inflação, confiança, renda real e emprego, fatores que determinarão o comportamento do comércio, do varejo.
Alguns especialistas sinalizam mais ‘novidades’ pela frente no varejo nesse sentido…
A reforma tributária pode criar um quadro mais negativo do que o atual. Se de um lado está desenhada uma simplificação de todo o processo tributário, do outro lado existe risco real de aumentar tributação e tornar produtos mais caros. Essa é uma perspectiva. Agora se a gente pensar emprego, vai melhorar. Da renda real, tudo indica que vai continuar melhorando. Se pensarmos em taxa de juros, vai cair. E quando olho o cenário internacional, é positivo para o Brasil, pois deve trazer mais investimentos.
Mas tem havido um excesso crítico em relação a comércio e varejo que não me parece que se sustenta no médio e longo prazo, porque há vitalidade do setor e potencial de expansão. E principalmente pelas perspectivas de melhora que consumo, renda, emprego e redução de inadimplência estão mostrando.
O varejo precisa ser omnichannel – principalmente depois do que aconteceu na pandemia. Mas as operações digitais também foram consideradas ‘culpadas’ pelos prejuízos de algumas dessas varejistas, e de afastarem investidores por ‘não darem lucro’. Faz sentido essas afirmações?
O problema existe para quem achar que pode ficar fora desse jogo. Vamos olhar pela perspectiva correta: quando olhamos o mercado mais desenvolvido do mundo, que é o mercado norte-americano, a previsão é de que a participação do e-commerce no varejo em 2027 seja de 24% – o que significa que 76% serão outros canais. Então há uma vitalidade muito grande, e uma oportunidade muito grande ainda de combinar canais para melhorar a experiência do consumidor.
Agora é real: o crescimento do digital leva a um acirramento competitivo, porque o consumidor tem uma maneira muito mais simples e fácil de comparar preços, produtos e ofertas – e isso aumenta o nivel dessa competitividade. E esse aumento é um dado que não tem como contestar, acontece em todas as circunstâncias pelo processo de empoderamento desse consumidor.
Mas se omitir de estar em um canal digital não é o melhor caminho: ao contrário, abre espaço para que a indústria entre diretamente no varejo, estabelecendo conexão com o consumidor. De outro lado, o varejo avança fortemente na questão das marcas próprias: ele tem a informação do consumidor, o que ele quer a cada momento, sabe de preferências.
Com esses dados, muitas redes estão caminhando no Brasil para ampliar de maneira significativa a participação de marcas próprias em seu modelo de negócios – o que aumenta e muito a rentabilidade no varejo. Acelerando o aumento dessa participação no varejo como um todo, já nos aproximamos da realidade dos mercados europeu e americano.
Qual a participação do e-commerce brasileiro no varejo hoje?
É de 12%, e continuará a crescer, mas não na velocidade que cresceu no período da pandemia.
E o pequeno comércio, que teve de se reinventar para sobreviver, como fica no atual cenário?
O pequeno, evidentemente, foi um pouco mais afetado, principalmente na questão de crédito e taxa de juros. Em compensação, os grandes fornecedores vêm prestigiando muito o pequeno para evitar o aumento da concentração só com os grandes. E isso tem estimulado a expansão dos pequenos – especialmente em combinações com franquias e outros modelos de negócios alternativos.
O maior trunfo do pequeno e médio é agilidade, flexibilidade, capacidade de se adaptar. Sim, houve mudanças importantes de geografia de consumo nos locais de compra. Mas o pequeno e o médio têm encontrado caminhos usando essa capacidade. Lógico que não falo do pequeno tradicional, que está inerte, mas do flexível, que tem condição de se adaptar e está se expandindo.
Não precisa ir tão longe assim: no setor de supermercados, o maior crescimento é das redes regionais. A conveniência criou uma oportunidade grande para pequenas operações próximas de onde consumidores moram ou trabalham. Há muito espaço, e os pequenos podem e devem mudar, buscar mais alternativas, como associativismo ou outro tipo de integração, para continuarem competitivos.
FONTE:
DIÁRIO DO COMÉRCIO